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Alguém ainda presta atenção na música?

Será que todo mundo está ocupado demais pra apreciar as coisas?

Agora estou sentado no tapete, com as costas no assento do sofá enquanto sinto o sol entrando pela varanda. Os últimos dias foram de uma bizarra frente fria que transformaram esse calorzinho na pele em um muito bem vindo momento de acolhimento e autocuidado.

Enquanto sinto alívio pela vitamina D salvando meu dia, coloco Maybe I’m Amazed, do Paul McCartney. Fico aqui, contemplando o arranjo. Primeiro o piano, os acordes que já evidenciam a profundidade da emoção que vai ser explorada.

Em poucos segundos, ele mostra como seu repertório interpretativo tem muito pra oferecer, varia a pressão do ataque em cada nota, reduz um pouco a pulsação, o que faz a gente ter fome pelo próximo compasso, onde um órgão leva a atmosfera pra além do céu.

Essa música foi criada em uma época onde os recursos de gravação eram absurdamente escassos, mesmo pra um ex-Beatle. Ainda assim, com um gravador portátil de 4 canais, dentro de casa, Paul consegue registrar o que ele sente: uma profunda admiração misturada com gratidão e amor pela mulher ao seu lado e pela família que tinham construído.

E dá pra sentir.

Essa música é de um outro tempo. Ao invés de uma avalanche de estímulos que deixa qualquer um ansioso, o que se tinha era o tédio sempre espreitando.

Com menos estímulos, um recurso era mais presente: a atenção. As pessoas iam pra casa, sentavam-se na poltrona e apreciavam do início ao fim a experiência que tinham comprado na loja de discos da cidade.

Hoje, a música é mais pano de fundo, como uma trilha sonora que escolhemos para o filme da nossa vida. Usamos a música pra lubrificar nossos exercícios, nosso trabalho, nosso estudo, pra aumentar nossa criatividade, pra dar foco, pra nos fazer esquecer a tristeza ou, pelo contrário, pra nos deixar tristes e nostálgicos.

Mas, por mais que seja tão presente, é raro alguém que sente para contemplar a música, absorver, ouvir as minúcias, os detalhes da produção, tentar entender a intenção do autor, interpretar a letra.

O mais louco é que eu realmente acho que tudo bem. É muito legal saber que as pessoas usam a sua música pra colorir o dia, pra dar mais sentido ao momento que elas vivem.

Mas ao mesmo tempo, sinto falta dos dias que eu ia pra casa de algum amigo e ficava ouvindo um disco, conversando sobre cada detalhe que a gente pegava mesmo sem entender nada de teoria musical. Éramos movidos pela pura paixão, a música nos fazia ferver o sangue, estimulava, fortalecia, contava nossas histórias.

Com o tempo, fui me tornando mais músico pra dar vazão a essa mesma energia. Apenas ouvir não era o bastante. Eu queria fazer música. Contar minhas próprias histórias.

Continuo amando tudo sobre música, mas devo admitir, poucas vezes consigo sentar e apenas ouvir. Infelizmente, isso parece ter se tornado uma regra, não só pra mim. Saltitamos de um lado pro outro como bolas de pingue-pongue, quicando por cima das coisas, sem ficar e deixar as experiências nos absorverem. O resultado é essa falta de arrebatamento. Mesmo se víssemos (ou ouvíssemos) algo incrível, não conseguiríamos relaxar, deixar a experiência nos envolver. Não à toa, quase tudo parece meio “meh”.

E sim, o mundo está muito mais complexo, muito mais difícil. Você, provavelmente, tem muito mais preocupações e obrigações, mas eu desejo que você possa ter essa experiência de parar um pouco e contemplar uma bela música, como quem senta na varanda pra ver a paisagem de um lugar tranqüilo e bonito.

Mais de 50 anos depois, O Paul está cantando sobre como ele ama a Linda, seus filhos, o cachorro… Talvez ninguém preste atenção mesmo, mas eu sou grato por poder ouvir.

Espero que você também possa fazer o mesmo.

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